sexta-feira, 20 de março de 2009

O Nariz - uma biografia não autorizada de um ditador


Quando nasci ganhei de presente um nariz com personalidade. Era com certeza um azinho-azinho, resultado de azinhos recessivos escondidos no meu pai e na minha mãe. Diferente das ventas avantajadas da família Teixeira e da napa dos Romanos, é curtinho e voltado para cima, do tipo "chove dentro", com um jeitinho petulante. Minha avó portuguesa tinha um parecido e acho que este foi o seu legado.
Descobri cedo que ele não estava ali para facilitar minha vida. Não queria de forma alguma entrar em contato com componentes aéreos estranhos que não fossem oxigênio. Nestes idos morava na Av. Autonomista lá em Osasco, uma via muito movimentada e fabricadora de fuligem. Não deu outra, ele se retraia, tapava as narinas numa alergia que assustou até o notório e saudoso Dr. Pizzelli, único alergista que se empenhou na minha causa perdida. Ele foi profético um dia para minha mãe: "este nariz não tem jeito!"
Mudamos para outro bairro mais arborizado e sem avenidas purulentas. Ele ficou mais afável por uns tempos, não queria ser osasquense talvez. Mas loguinho detectou as fábricas próximas no Jaguaré e vez ou outra reclamava se trancando totalmente. Por causa dele não pude ter bichos de pelúcia, bonequinhas na cama, tapetes no chão, gatos, cortinas, usar perfumes extravagantes. As roupas no armário que saiam para passear no inverno tinha que passar por um longo ritual de banho de sol e lavagens.
Não bastasse impor restrições no meu cotidiano ainda se faz perceber mais que os meus outros traços fisionômicos. Foi responsável também pelo meu apelido de infância. Estava totalmente desarmada quando um menino me falou "Narizinho, passa a borracha". Olhei para o livro que estávamos lendo, "Narizinho", o livro de leitura da 2ª série com historinhas à la Monteiro Lobato. A Narizinho na capa era eu própria retratada. E fiquei "Narizinho" até que mudasse de escola e de bairro.
Tenho impressão que ele tem um quê meio telúrico. Um tipo chegado na natureza e ar puro morando numa pessoa totalmente urbanóide! Estamos sempre em conflito. Só encontramos um pouco de paz no nosso relacionamento quando saio de São Paulo. Ele fica feliz, se abre todo e me permite sentir todos os cheiros, todas as nuances de odor que existem. É até comovente ver como ele se entusiasma e me proporciona momentos olfativos memoráveis.
Nas minhas idas e vindas aos otorrinos constatei que a única forma de lográ-lo é com altas doses de cortisona. Você tem "rinite hipertrófica" vaticinou um dos otorrinos. "E um desvio de septo" para piorar. Mas definitivamente não vou me entregar às drogas só para apaziguá-lo. Nem vou cortá-lo também para endireitar o tal septo. Por mais que ele mereça por todo o sofrimento que me causou.
Hoje minha política é essa: faço tudo o que quero e não me importam mais suas chateações. Sou arquivista, leio livros empoeirados, tenho gatos, ando descalça, lavo o cabelo e saio por aí com ele molhado, respiro a poluição de São Paulo por convicção.
Se ele quiser, que mude para outra cara!

5 comentários:

Anônimo disse...

Oi Cris,

Adorei o seu Mocó, li quase todas as suas histórias. Você escreve muito bem, serei frequentadora do seu Mocó.
A última do dia 20 de março eu conheço muito bem pois, meu filho que acabou de fazer 20 anos tem esses mesmos problemas, com recomendação médica de cirurgia para o desvio de septo.
Um grande beijo com saudades
Sandra (Nancy II)

Emerson disse...

Muito bom esse final, Cris! :-D

crisim disse...

Sandrinha,
Se você estiver em São Paulo poderá conhecer meu mocó de verdade, numa próxima batatada. Que tal? E aproveitar para matar as saudades da turma toda. Quase... A Bruna está em Belém. Mas providenciamos a Bruna virtual, hehehe.

Emerson, quer alugar meu nariz? Leve ele para Belém que ficará bonzinho...

ZECA LEMBAUM disse...

Você se esqueceu de informar que seu nariz é meramente um assessório decorativo em sua face, ou seja: um enfeite.

crisim disse...

Zezim,
Você se esquece que ele pode ser tudo, menos passivo. Quantos rolos de papel eu gastei com ele? Quantas situações vergonhosas não passei, apelando para manguinha da camiseta, assoando nariz em guardanapo chulo de boteco?
No fundo é um rebelde. Não quer cumprir seu papel de identificador de cheiros. E em protesto ele me faz penar, me deixa esvaindo pelas narinas...